Sobre quem determina o que é arte
e o quanto ela vale na sociedade do espetáculo,
uma ligeira abordagem
Sabemos que as novas formas de soberania capitalista desenham, na contemporaneidade, a cartografia do poder econômico e cultural onde as situações de validação
artística já não se organizam mais segundo um ponto de vista que envolva formas de legitimação vinculadas a processos tradicionais. Processos estes que compreendem uma
diversidade considerável ao longo da história da produção artística da humanidade.
Do mecenato religioso ao laico, do aristocrata ao burguês a produção artística passou por processos de validação que podia consistir desde a simples ação da
encomenda ao mestre artesão membro da guilda medieval ou no seu reconhecimento posterior como artista-propriedade de um nobre suficientemente rico para torná-lo membro
encarregado do registro de sua corte ou, ainda, entre estes reduzidos exemplos, na sua elegibilidade pelos salões de arte apoiados em uma crítica relativamente livre
das imposições do mercado. No Brasil, por exemplo, Pedro II foi o grande mecenas da produção artística brasileira. Seu tão citado “bolsinho” patrocinou as várias áreas
do conhecimento no país visando uma autonomia cultural que julgava necessária à elite local em busca de uma identidade própria emergente.
Novos questionamentos atraem hoje, a esse respeito, a nossa atenção. Entre eles, os que se propõem a interrogar sobre como - dentro de um contexto de
universalização das mídias que gera uma fusão conceitual e da realidade de um mercado mundial de arte que dirige a produção artística às normas estéticas e ideológicas
do circuito euro-americano hegemônico - em que circunstâncias e por que princípios são produzidos os discursos teóricos e o processo de reconhecimento das artes
visuais?
O mercado dita as regra, promove validações. Sempre foi a regra. Mas já não se trata de um olhar de armarinho, mas de holding que rege escolhas, reconhecimentos e
enriquecimentos inimagináveis de determinados artistas, aprovados pelas regras do jogo. A politica que dita os processos de subjetivação em relação ao território da
arte diz respeito ao lugar que ela e criadores ocupam nas estratégias do capitalismo financeiro. O valor artístico, validado antes por um corpo de iniciados,é julgado,
nos tempos que correm por uma sociedade onde o consumo e o espetáculo são os seus deuses principais de culto.
O neoliberalismo consolidou um cenário de legitimação artística que dispõe da força criativa da arte que passa por um processo de seleção devidamente celebrado e
glamourizado, quase hipnótico, onde traduzida em consumo ela, a arte, se identifica com a vida veiculada pela publicidade e pela cultura de massa. Um tipo de relação
de poder que se dá basicamente por meio do feitiço da sedução ampliado pela mídia que dita o olhar e valida a estética de ocasião. Talvez seja necessário, em nossa
contemporaneidade fragmentada, desenvolver uma nova leitura da arte e das forças que determinam a sua produção na contemporaneidade.
Recentemente, e muito lentamente, esta situação vem se tornando consciente. Alguns teóricos começam a refletir, principalmente nas três ultimas décadas,sobre a
produção artística e sua legitimação na pós- modernidade e a buscar a reação das mentes insubmissas, o que pode tender a levar à quebra do feitiço do consumo logo
existo. Isto pode ser observado nas ainda raras estratégias de resistência, individual ou coletiva, nos centros hegemônicos ou na periferia que vão acontecendo nos
últimos anos. Mas, poucos se dão conta, ou se importam,com a medida do poder do mito de Midas implícito no canto sedutor do mercado de arte neoliberal.
Por outro lado, o constante afirmar dos mais avisados de que a arte se encontra numa crise de identidade corresponde, quase sempre, apenas a uma contemplação
estática das ruínas da cultura ocidental. A dificuldade de resistir à sedução da serpente em sua versão contemporânea, própria do paraíso neoliberal, buscando uma
energia de superação que se sobreponha ao simulacro e aposte no real, entretanto, ainda se expressa em atitudes isoladas enquanto o circo, a sociedade do espetáculo,
reina absoluto no cenário global contemporâneo, incluindo o artístico.
O que pode nossa força de criação para enfrentar este desafio?A arte arrasta sempre a magia na sua sombra, o encanto do enigmático, a inquietação das mentes
insubmissas, a incompletude do estabelecido, a procura da transcendência, a vontade de superação do conseguido.Em si isso se constitui em um alento nesse mundo de
pouca esperança. O artista pode abrircaminhos resistindo e isolando-se do ruído circundante do grande espetáculo que é promovidopara lhe retirar essa capacidade de
gerar propostas e ressonâncias.Afinal, a arte é aquilo que resiste segundo Deleuze.
A logica do predador se ajusta a um mundo onde a arte de iludir e de se iludir tem um lugar bem mais aceitável que a do despertar. E tem o poder de remeter para o
estigma da anormalidade tudo o que ela não abarca. A tentativa do artista de não realizar tão somente o inofensivo, de não investir no decorativo, de não originar
apenas um valor de mercado,de não gerar um espelho de Narciso a partir da sedução do sucesso imediatista é o caminho que uns poucos, uns raros apostam como
alternativa, como rota de fuga e resistência.
A história da relação entre arte e política torna – se nesse cenário ponto crucial. A arte sempre foi política se pensarmos, por exemplo, em seus comprometimentos
com religião ou propaganda dos muitos Estados aos quais ela se atrelou. A ideia contemporânea de arte política passa por sua capacidade de reconfigurar o sensível.
Corresponde a uma teoria que se embasa na iniciativa de artistas que mergulham no campo ampliado da criatividade humana onde o caráter político é relacionado ao fato
de uma integração do trabalho artístico ao agir, inclusive contra esse mercado que legitima o que lhe é semelhante.
A proposta de uma descolonização mental pode relativizar condicionamentos a partir de uma visão mais generosa, mais sensata e mais ética. A arte pode então
continuar a ser o último reservatório de imaginário a escapar de ser incorporada/apropriada pelo sistema que hoje serve ao capitalismo neoliberal. Esse talvez seja o
caminho da sua verdadeira legitimação.
Madalena Zaccara
Doutora em História da Arte
Professora Associada do Departamento de Teoria da Arte da UFPE
Referencias
DELEUZE, Gilles, GUATARI Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2004.
PAIVA, José Carlos de. Investigar a partir da ação intercultural. Porto: Gesto Cooperativo Cultural, CRL, 2011.
ROLNIK, Suely.Geopolítica da cafetinagem. 2006
in http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf
ZACCARA, Madalena. Sobre Política e Identidade: vestígios do corpo como símbolo de resistência na arte contemporânea em eixos não hegemônicos in anais do XXII CONFAEB
Arte/Educação: Corpos em Trânsito.São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 2012.
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